Chegar à Adega de Palmela pelas 9h da manhã, num dia claro de setembro, daqueles que ainda prometem o calor do verão mas já têm essa qualquer coisa de outono difícil de definir, é mergulhar de imediato na promessa de um dia diferente.
Vindimar é o melhor de uma tradição viva. Foi para percebermos isso mesmo que fomos convidados, este ano, a visitar a Adega de Palmela e fazer parte, literalmente, da experiência da vindima, mergulando assim na cultura local e na arte da produção vinícola e história desta casa reconhecida como grande produtora de vinhos da região.
À entrada na Adega, fomos de imediato recebidos com toda a simpatia e brindados com o kit de vindima: t-shirt, chapéu de palha, saco, garrafa de água, uma garrafa de vinho branco Adega de Palmela 2023 e até um saca-rolhas de oferta fizeram parte da oferta, mas foram guardados para serem entregues no final. Pequenos símbolos de um ritual que se iria estender até às 16h, entre vinhas, barricas e histórias de quem vive o vinho de corpo e alma.
A lógica é simples, e colhe fruto entre os visitantes que se sentem de facto atraídos pela cultura da uva e do vinho e imersos numa experiência única: as mãos que colhem as uvas, muitas vezes, têm tanto a contar quanto os próprios vinhos que delas resultam.
Seguimos em caravana para uma das vinhas dos vários produtores associados da Adega, que foi o cenário de início da jornada.
Aí, fomos recebidos por Teresa Grilo, responsável pelo turismo e verdadeira anfitriã desta experiência. Ao longo de todo o dia, foi ela quem conduziu os visitantes, partilhando curiosidades e respondendo a perguntas.
A nossa anfitriã e cicerone aproveitou também para recordar a marca do ano: sete décadas de história. “Os nossos vinhos falam por nós, mas o que nos distingue é a alma e a paixão com que trabalhamos”, afirmou, passando depois a palavra a Ângelo Machado, presidente do Conselho de Administração. Com voz serena, contou como em 1955 cerca de 50 sócios se juntaram para criar a adega. 70 anos depois, a cooperativa é um pilar regional, com mais de 200 viticultores e milhares de litros produzidos.
A colheita manual, feita com tesoura e balde, revelou-se um exercício de paciência e cuidado. Os engenheiros e viticultores que nos acompanharam lembraram que cada bago colhido é fruto de um ano inteiro de trabalho, de uma dedicação diária que começa muito antes de setembro.
Enquanto apanhávamos uvas, era impossível não reparar no carinho com que os anfitriões falavam da vinha – “é como se fosse um jardim um bocadinho maior que o normal”, disse Luís Silva, enólogo e membro da direção, sublinhando que o segredo está no amor e na tradição. Assim, e a pensar promover os sabores da terra, a iniciativa Um Dia de Vindima abriu-nos as portas à realidade da vindima e dos vinhos de Palmela, no que foi uma simples amostra de um dia de trabalho nas vinhas.
A primeira etapa foi a apanha da uva. Fomos acompanhados e auxiliados desde o primeiro momento, nomeadamente no sentido de, como visitantes e apreciadores de vinhos, percebermos onde tudo começa: na natureza, na própria videira. Com a crescente implementação de processos de mecanização e automação – sobretudo em vinhas associadas à Adega de Palmela produtoras de vinhos em maior quantidade -, o primeiro passo é perceber como se faz a apanha da uva, quer manual, quer mecânica.
De seguida, os baldes cheios de cachos eram despejados para as cestas de vindima. Dali, os carros transportaram essas cestas para a Adega: aproximava-se a etapa da entrega, pesagem, análise do mosto e prensagem.
A meio da manhã, pausa merecida: piquenique no meio da vinha. Foi, na verdade, um cocktail ao ar livre. Em mesas improvisadas, e com a fantástica melodia de um violoncelo interpretada por Tiago António, do Conservatório Regional de Palmela, os vindimadores experimentais puderam regalar-se com pequenos acepipes frescos e deliciosos. Este repasto incluiu uma seleção de frutas frescas, queijos variados, carnes frias, frutos secos, seleção de pães, compotas e, ainda, doces regionais, cuidadosamente dispostos sobre uma toalha estampada.
Como não podia faltar, lá estavam também à discrição os vinhos da Adega. Estava uma manhã batida a sol quente, e o copo servido das garrafas retiradas dos baldes de gelo sabia mesmo muito bem: brancos aromáticos, rosés leves e frescos, servidos em copos de pé alto, numa verdadeira sessão de degustação coletiva. Entre os brindes, não faltou ainda um copo de Moscatel Roxo da casa, que deu um toque doce e aromático ao final da manhã. Foi o primeiro momento em que se percebeu que a vindima não é só trabalho: o convívio marca a importância do vinho, e vice-versa.
De volta à Adega (com o almoço cada vez mais próximo…), os visitantes tiveram contacto com a experiência real, as etapas de produção pelas quais estes produtos mundialmente famosos têm de passar: a pesagem da uva, a preparação do mosto para análise no refratrómetro e a prensagem. Estas operações são, de facto, momentos empolgantes do processo, sobretudo para quem não conhece ou nunca viu.
O refratrómetro é um instrumento que mede a densidade do mosto, o líquido obtido pelo esmagamento prévio de alguns cachos num recipiente, e a sua função é calcular o teor de açúcar presente – este apuramento é determinante para o valor a atribuir à colheita e o destino a dar-lhe. Nestas operações fascinantes, ficámos a conhecer alguns dos colaboradores da Adega, uns mais recentes, outros que já ali trabalham há mais anos, com uma devoção total à casa e que se revezam em diferentes postos e papéis, consoante as necessidades.
Houve ainda espaço para a pisa a pé das uvas, momento simbólico e divertido que proporcionou ótimas fotografias e… alguns sorrisos.
Iniciou-se então a visita guiada às instalações, onde, uma vez mais, se revelou toda a complexidade da produção. Do tegão à fermentação, das cubas de inox às barricas de carvalho francês e americano, foi possível captar o mais importante e interessante: é que, em matéria de vinho, cada detalhe faz mesmo a diferença.
Foi também aqui que conhecemos o Moscatel Roxo 15 anos, orgulho da casa. Um vinho licoroso que estagiou pacientemente em barricas de carvalho usadas no envelhecimento de aguardentes. O rótulo não engana: 19% de volume alcoólico, mas um sabor suave e profundo, ideal para acompanhar, por exemplo, doçaria regional e chocolate.
A experiência ganhou um novo fôlego na hora de provar cocktails preparados com vinhos da casa, acompanhados por tapas regionais. Uma forma criativa de mostrar que o vinho pode reinventar-se em contextos diferentes, mantendo sempre a identidade. Numa época em que os mercados disponibilizam muitos tipos e variedade de produtos, desde o vinho desalcoolizado ou de baixo teor alcóolico, aos vinhos com sabores adicionados, importa salientar que um bom vinho não ultrapassa, em média, os 13 ou 14 graus.
Antes do almoço, para abrir o apetite, houve outro encantador cocktail na adega, onde as mesas para o banquete estavam dispostas sobre barricas cheias e preparadas com todo o rigor, num ambiente temporal castiço e inesquecível. Aqui, foram servidos petiscos requintados que complementavam a atmosfera rústica do local, com uma variedade de canapés, enchidos e mais frutas e queijos. Tal como o primeiro repasto, este incluía uma seleção de queijos, carnes frias, frutos secos, pães e bolachas, servidos sobre mesas-barricas, com garrida fartura.
O almoço veio a seguir. Note-se que estes eventos são preparados em colaboração com empresas associadas à Adega de Palmela, neste caso a Tiago Kattering.
Deu para perceber que se pretendia apostar nos pratos tradicionais. No entanto, e certamente devido à quantidade de convivas envolvidos (as mesas pareciam as de um banquete de estado, pela extensão que ocupavam ao longo de toda a Adega…), esse momento acabou por ficar aquém das expetativas criadas. De facto, ambos os cocktails foram muito melhores, em termos de qualidade e diversidade dos produtos apresentados, que de resto, iam bem com a oferta de vinhos postos à consideração dos convivas.
Mesmo assim, valeu a pena. Começámos com uma sopa reconfortante, seguida de Bacalhau à Brás e Porco na Caçarola ou À Caçador. Um Cheesecake frio (mais para o gelado…) fez a sobremesa. Entre mesas corridas e pratos tradicionais, harmonizados com vinhos da Adega, conversou-se sobre o futuro do setor, os desafios do consumo e a importância de preservar a tradição.
A atmosfera era bem a de festa (até porque o Adega de Palmela Colheita Selecionada 2023 é suave, mas enganador…), mas também de partilha de conhecimento. Ficou clara a mensagem: o vinho é mais do que “beber um copo”, é cultura, história e identidade.
A jornada terminou pelas 16h, mas a sensação foi de ter vivido mais do que uma simples atividade turística. A vindima na Adega de Palmela é uma experiência empírica e cultural que liga o visitante à terra e às pessoas que a trabalham. Uma janela aberta para o que é, e continuará a ser, a essência desta região.
E para quem não esteve presente a 3 de setembro, fica o convite: as vindimas abertas ao público regressam todos os anos, com número limitado de participantes (entre 2 e 65 por dia). As crianças até aos 4 anos não pagam, e dos 5 aos 9 têm 50% de desconto. O transporte é assegurado pelos próprios participantes e o local exato da vinha só é revelado após a reserva.