Primavera Sound Porto 2024, dia 3 e balanço – Pulp como ideal do belo, The National como relógio suíço, e o amanhã que canta

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Até para o ano!

Sábado é dia de almoço em Matosinhos para qualquer veterano do Primavera Sound Porto que se preze, e o Salta o Muro e Adega Stadium – Zé Papagaio (Núcleo Sportinguista de Matosinhos) são já capelas de sempre para parar antes de chegar ao destino desta peregrinação. Os convívios são bonitos e o caminho é bom, mas a chuva que era para ser ontem acaba por ser hoje mais a sério, o que obriga a abrigo tendo em conta a questão essencial da noite. Perde-se um concerto dos Mannequin Pussy onde a energia com certeza não esteve em falta (I Got Heaven, saído este ano e produzido por John Congleton, é muito recomendável), ganha-se parte de um jogo deprimente da Selecção Nacional.

No entanto, chega-se em condições óptimas (até os autocarros da STCP pararam na Boavista em vez de fazer desfile carregadinhos desde a Baixa!) para se chegar bem a tempo de Lisabö, banda basca de um rock hardcore que se transformou ao longo dos anos como uma das bandeiras significativas do espírito Primavera. Mais em Barcelona que cá, bem pela falta de identidade cultural atenta ao resto da península (Animalia Lotsatuen Putz é objecto de culto). Longe de um iberismo político (vade retro!), não conhecemos uma oportunidade maior para estimular a polinização entre os dois lados da fronteira para projectos musicais que merecem. Pista nº 1 para um Primavera melhor.

Moldura humana bem digna num concerto musculado, o mais parecido possível com o que era o ATP (cujo regresso é a pista nº 2 para um Primavera melhor). Felizes com o resultado, mas com Pulp à espera no palco principal dos corações independentes, faz-se uma saída à francesa. Falta quase uma hora para o início, mas temos que ir para lá.

É difícil escrever sobre um concerto da banda preferida. Mais ainda quando cai a consciência que já passaram tantos anos desde o fim da carreira de estúdio dos Pulp (We Love Life sai em 2001, a curiosidade-jóia “After You” de 2013, após o fim da primeira tournée de regresso vamos assumir que não conta para este totobola). 23 anos desde o arranque em 1978 – obviamente com um adolescente Jarvis Cocker, 23 anos desde “Sunrise” e “Weeds” até hoje. O sentimento de pura adrenalina em 2011 com o espantoso regresso em Barcelona (com direito a pedidos de casamento a aguardar o regresso dos reis e o início do caso de amor do escriba pelo Primavera Sound) e depois da aula magíster dixit em Paredes de Coura nesse verão (com alinhamento bem remexido, a espantosa “O.U.” metida para lembrar a quem de direito que a Britop foi o género que glorificou, mas longe de ter criado o agrupamento da muito orgulhosa Sheffield), é hoje diferente. A naftalina nas veias está lá, mas um choro de Madalena também, o sentimento que se calhar é a última vez que os vamos ver a eles.

“I Spy” rebenta a bolha da depressão para focar na festa, “Disco 2000” cumpre o requisito de Nick Hornby de que a segunda música da mixtape tem que ir ainda mais além da malha inicial. Pouco depois, para acalmar, “Something Changed”, a melhor música em casamentos. Momento em que se apercebe que Jarvis Cocker é ainda mais Jarvis que alguma vez foi – o gesto, a voz impecável, o chique mais brilhante além canal da mancha. O resto da banda também, alguns novos (Steve Mackey já partiu numa implausível quebra de imortalidade), mas é Candida Doyle que continua a destacar-se ao fundo como a rainha dos teclados. “Pink Glove” volta a meter a rota naquilo que os Pulp fazem melhor – meter letras adultas numa estilo como a pop que continua a apreciar as melodias e não apenas a pura indústria do som. Foi por estas e por outras que sempre pediram que as palavras não fossem lidas nos livrinhos dos cd’s ao mesmo tempo que se ouviam as faixas, e que as letras de Cocker fossem publicadas pela Faber & Faber.

“Sorted for E’s & Wizz” é a música para os frequentadores de raves com intelecto, “This is Hardcore” a melhor faixa sobre coito, e “Do You Remember the First Time?” o  anúncio para a desbunda – após ter sido a senha de regresso ao sonho em 2011 a seguir a um show de golfinhos virtuais. A incrível “Babies” mostra que entre His ‘n’ Hers e Different Class venha o Diabo e escolha (“I Know You Won’t Believe It’s True / I Only Went With Her Because She Looks Like You” a confissão esmagadora de desespero sentimental), “Sunrise” a dar o solo épico para dançar à luz da lua mais forte da noite. Antes do fecho, nada de conselhos vagos inspiracionais muito em voga em 2024. Não. Apenas algumas recordações cuidadas, como a da estreia nacional no Festival Imperial ao Vivo em 1998 no Porto, de memória para pouquíssimos (esta é apenas a terceira vez dos Pulp em Portugal, todas entre Douro e Minho). No seguimento, “Like a Friend”, o hino de cama “Underwear” (“How the Hell did You Get Here / Semi-naked in Somebody Else’s Room” seguida de “If Fashion Is Your Trade Then You’re Naked / I Guess You Must Be Unemployed , Yeah”) e a sem mais comentários “Common People”.

Fica o sonho de um dia ver ao vivo serem tocadas as jóias gravadas antes do mainstream se cruzado casualmente com os Pulp (Como diria Heston Blumenthal, um sucesso repentino que levou 15 anos a acontecer): “My Lighthouse”, “Master of the Universe”, “Anorexic Beauty”, “They Suffocate at Night”, “Death II” ou “Little Girl with Blue Eyes”. E, em especial, “Love is Blind”. Talvez um dia. E obrigado aos melhores de sempre.

Que fazer depois? Para uma coisa completamente diferente, Conjunto Corona assume as logo as rédeas no Dupont Super Bock do Dupond Vodafone. Aqui está um fã do antropólogo da era digital David Bruno, mas os sentimentos ainda estão demasiado vivos. Dizem as amizades a ver pela RTP que está a ser épico, que dão tudo – até hidromel caseirinho, que estrilham com a gentrificação e os assaltantes à Portugalidade, aqueles que a retratam apenas para o lucro e esquecem a sinceridade. Apesar da falta de capacidade emocional de os ver naquele momento, foi claramente um acerto de escolha de horário para artistas nacionais. Uma raridade (dizer que há muitos nomes nacionais e depois chutá-los quase todos para o início da tarde não é nada) que é a pista nº 3 para um Primavera melhor.

Há também The National no palco Porto, vez nº 22 em Portugal. Seríssimo caso de lusitana paixão correspondido pela banda norte-americana (uma raridade transatlântica que até faz perdoar a agenda de influência eleitoral anunciada do palanque que ignora por completo que o eleitorado presente não vota nos States, mas quer clapter fácil). Assim, voltar a ver a competência de Matt Berninger e amigos é reconfortante, e até se sabe de relatos de gente desatenta ao fenómeno e que fica surpreendida pela banda ser tão boa. Longe de fazermos parte da turba que goza quando os artistas “estão sempre cá”, anuímos em concordância. São bons e são, mas a atenção cuidada à setlist foi dada em Paredes de Coura em 2019. O que importa é a saúde, e para animar os ânimos o destino é Mandy, Indiana. O fenómeno Arca está ao lado, mas as últimas gravações não provocaram o interesse do disco com o nome próprio de 2017. Já o noise dançante dos franco-ingleses foi o antídoto perfeito, as letras francófonas de Valentine Caulfield – vide “Pinking Shears” a casar perfeitamente ao vivo com o resto da banda, em especial com a bateria de Alex Macdougal. É deste tipo de projetos que o Primavera Sound Porto não se pode esquecer, pura transformação de sentimento em movimento. Catarse. Num ano sem eletrónica com palco dedicado, pista nº 4 para um Primavera melhor.

No resto, e em balanço de cabeça quente – será que o Plenitude não poderia ser o tal super palco necessário para a edição do Primavera Sound Porto, para artistas que, nos tempos pós-pandemia, e como reforçado pelo diretor José Barreiro, cobravam 300.000€ e agora cobram um milhão? O responsável tem razão quando diz que precisa de um bocadinho de sorte e não de ajuda divina, mas daqui – onde se acredita na espiritualidade – também se acha que a sorte é muito saber ouvir. Concentrar ali – basicamente tão perto da estrada como o palco Porto, e voltar a ter música na clareira mágica onde era o ATP. E dá para comunicar melhor e mais depressa, pecha de sempre e cada vez mais sentida como ferida a sangrar. Nós acreditamos em vocês.

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